quarta-feira, 9 de setembro de 2020

De pescadores a catadores: Moradores de Itaguaí, sobrevivência é igual à preservação ambiental


Família que mora no Jardim América faz mais pelo meio ambiente da cidade do que muitos governo

ITAGUAÍ - Se alguém por acaso pedisse para apontar uma família itaguaiense típica a tarefa seria muito bem cumprida se a escolhida fosse a família de Vanessa da Conceição Lima, de 35 anos. Moradora do Jardim América, essa mulher nascida em São João de Meriti traz consigo a fibra, a generosidade, a humildade, a gentileza e a garra que define o povo de Itaguaí. A doçura também faz parte do seu comportamento: foi assim que ela convidou esse repórter a comer uma feijoada que ela faria especialmente para o jornal O DIA. “Feita na lenha, porque gostamos de coisas assim, da roça”, explica ela, que, apesar de lutar todos os dias para manter a família alimentada, não hesita em nenhum momento a oferecer comida ao repórter. Vanessa é assim: comovente, de modo natural, sem ódios ou engajamentos políticos.

O marido de Vanessa, Marcio dos Santos Ferreira (43 anos), nasceu em Itaguaí. Ele é pescador, hipertenso e diabético, tem um barco de cinco metros com motor de 4 hp. O casal tem um filho, Jean Vitor, de nove anos, que estuda na escola estadual Oscar José de Souza. Por isso, Vanessa conseguiu receber algumas cestas básicas. Mas com a pandemia, o ramo de pescaria sofreu um impacto e a família se viu em apuros. Foi quando Marcio teve uma ideia.

COLETA NO RIO
Ele, Vanessa, e de vez em quando o sobrinho deles - Leandro Augusto Lima Ribeiro (26 anos) - botaram o pequeno barco no rio conhecido como “Rio da Ponte Preta” e se lançaram na coleta de resíduos. Leandro era ajudante de pizzaiolo e foi demitido por causa da pandemia. Vanessa às vezes ajudava o marido quando ele não tinha parceiro para ir pescar e quando Jean ficava na casa da tia. Para tentar incrementar a renda de casa, Vanessa vende Avon, Natura e lingerie, além de vender o peixe que o marido trazia.

Mas, com a pandemia, tudo mudou. O dinheiro começou a ficar mais difícil de conseguir. Por isso, todos passaram a se dedicar a uma nova atividade: percorrer o “Rio da Ponte Preta”, que desemboca no Rio da Guarda, coletando principalmente garrafas pet e outros vasilhames de plástico, além de lixo, utensílios descartados, embalagens etc. Marcio vai com Vanessa e Jean e de vez em quando com o sobrinho Leandro. Todos se equilibrando no barco e pegando a maior quantidade de lixo que podem pelo caminho. Fazem isso há meses, geralmente às segundas e quartas. Já chegaram a coletar cerca de 150 quilos de plástico em um dia, que vendem aos ferros-velhos da cidade, com quem estabeleceram parceria.

Marcio e Jean clicados por Vanessa: mais um dia de coleta no rio da Ponte Preta - Arquivo pessoal

Com isso, conseguem arrecadar mais ou menos R$ 600, dos quais precisam tirar os custos com gasolina e com sacos plásticos para colocarem o lixo. O que sobra dividem com Leandro, que tem dois filhos. O sogro de Vanessa, Dilson da Silva Ferreira (66 anos), costumava acompanhar Marcio na pescaria, mas ele teve um AVC e hoje em dia apresenta sequelas.

Em maio, Marcio testou positivo para Covid-19 e ficou quatro dias internado, com 45% dos pulmões comprometidos. Mas recuperou-se bem. O restante da família não se contaminou.

CONSCIÊNCIA AMBIENTAL
Vanessa conta que ficou muito surpresa nas primeiras vezes que acompanhou o marido no trajeto em que realizaram a coleta. “Não esperava que tivesse tanta coisa. Vimos até geladeira descartada na beira do rio. Queria que o povo fosse mais consciente, não jogasse lixo no rio, mas nem tudo é perfeito. A gente tenta ao menos amenizar”, explica.

Ela continua: “Precisamos de ajuda com sacos para fazer a coleta, de um motor mais potente, de 8 hp, que não gasta tanto combustível. Queríamos usado, mesmo. O motor que temos não aguenta para ir mais longe”, pondera Vanessa.

Parte da coleta de um dia: plástico jogado no rio é vendido para ferros-velhos na cidade - Arquivo pessoal

Ela não reclama, não exige, não tem raiva. Apenas tenta fazer com que sua família progrida. Ela agora entende que sua nova atividade faz bem para Itaguaí: “Vamos continuar, mesmo com a pescaria voltando aos poucos. Marcio pretende intercalar a pescaria com a coleta”, planeja.

Ajuda do governo para a coleta? “Nunca tivemos”, responde. A família recebe alguma ajuda de doações particulares de sacos de lixo e uma ou outra coisa.

SEMPRE HÁ LIXO
Apesar de contarem com a ajuda financeira do governo por conta do período do defeso (proibição de pescar para que os peixes possam se reproduzir), a família tenta de todo jeito equilibrar o orçamento, ajudar uns aos outros, viver bem em comunidade. Se o mar não está para peixe, a disposição fica maior. E de repente, Vanessa e Marcio se deram conta de que o que estão fazendo para conseguir mais algum dinheiro ajuda não só os humanos, mas várias outras espécies. “É bom fazer algo pela flora e pela fauna”, reflete a batalhadora Vanessa, que chama a atenção para a varanda da casa dela, feita com pneus descartados: “com plantas, para não encher de água e virar foco da dengue”.

O horror de um rio cheio de lixo aumenta na medida em que Vanessa explica que, embora em menor quantidade quando eles voltam aos mesmos lugares, ainda há lixo. Ou seja, sempre há lixo.

Além da óbvia negligência dos governos na fiscalização e na limpeza, há o fator falta de consciência ambiental. Mas quem joga lixo no rio não faz parte da típica família itaguaiense. A família símbolo de Itaguaí ainda é feita de garra, gentileza, amor ao próximo, à vida e à natureza. Como Vanessa, Marcio, Jean, Dilson e Leandro. E tantos outros que batalham para sobreviver em Itaguaí sem perder a essência linda de que são feitos.

A feijoada feita na lenha vai alimentar não só o estômago, mas o coração.

Via: O Dia

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